Ninguém morrerá de frio: Um gesto ordinário de cuidado
- rodrigocarancho
- 23 de out.
- 3 min de leitura
Por Rodrigo Carancho, fundador da Escola Aberta do Cuidado.
Esse texto é dedicado aos usuários dos CAPS espalhados pelo Brasil que, por experiência, acabaram virando meus professores.
Incontáveis foram as histórias de cuidado que escutei Brasil afora. Tanto caminhando por territórios tradicionais, como no povo que encontro nos projetos da Escola Aberta do Cuidado e também nas quase duas décadas em que estive trabalhando em diferentes territórios com cuidado em saúde mental pelo SUS.
Vivi, testemunhei e escutei histórias de conservação da vida, de atenção ao outro, de
consideração e preocupação com a dor alheia, de convivência e festejo, de ritos de nascimento e de morte, e de respostas às inúmeras crises que a experiência de estar vivo pode nos apresentar. Cada uma dessas histórias marcou meu corpo-coração-memória e moldou a maneira como hoje enxergo o mundo.
Uma dessas histórias vivi no inverno de 2022, no extremo sul da cidade de São Paulo, especificamente no Grajaú, às margens da represa Billings. Eu era gestor de um CAPS AD em um território distante do grande centro. Como é comum em todo o Brasil, boa parte das pessoas que tinham esse serviço como referência estava em situação de rua. Homens e mulheres que se perderam em alguma curva da vida. Tiveram seus laços afetivos esgarçados, seus corpos feridos, sua fome sentida e sua dignidade corrompida.

O inverno tinha chegado com força naquela época. A Prefeitura Municipal de São Paulo já vinha operando estratégias para períodos de baixas temperaturas. As noites facilmente chegavam aos 7 graus, mas, devido à represa e aos ventos, a sensação térmica era de uma temperatura muito menor. Uma intempérie capaz de arrancar a vida de alguém no meio da madrugada. Hipotermia, morrer de frio, morrer de desgraça, morrer de abandono, morrer indigno.
Quando a noite chegava, o portão do serviço se fechava e pessoas se amontoavam em papelões nas calçadas em frente. Ligavam 156 na tentativa de encontrar alguma vaga em um abrigo. Escutavam do outro lado a promessa de que seriam atendidos. Era uma promessa, só. Distante 30 km do centro de São Paulo, o transporte nunca chegava, a vaga nunca saía e a madrugada ia chegando. Para o frio congelar um coração, era só questão de tempo.
Foi aí que aconteceu um gesto ordinário de cuidado. Daqueles gestos que não aprendemos em uma faculdade de saúde ou de qualquer outra área. Contrariando qualquer regra institucional, portaria, lei, gabinetes tralalá-tralalá, assumimos toda a responsabilidade naquele momento.
Abrimos o portão, simplesmente. (Quantos anos você acha que um profissional precisa estudar para aprender a abrir um portão?)
As pessoas, independentemente de sua condição, entraram. Esvaziamos nossos estoques de cobertores. O espaço de convivência diurno virou um dormitório coletivo. Ali, naquele grande salão, a noite seguia fria, mas tínhamos a certeza de que ninguém morreria de frio.
O que aquela equipe expressava em seu gesto ordinário de abrir o portão era um profundo compromisso com a vida e sua grande força: a de continuar viva.
No dia seguinte, ainda antes do meio-dia, gestores centrais telefonaram-me cobrando prestação de contas daquela insubordinação. Afinal, nem eu nem minha equipe de trabalho seguimos os trâmites oficiais do Estado, que vive tão preocupado com seus cidadãos. Pedi desculpas, para me livrar da questão, mas segui, junto com a equipe, abrindo o portão.
Ninguém morreu de frio, tampouco de fome. Proteção e comida não são elementos terapêuticos, mas fundamentos da dignidade humana que acompanha nossa espécie há milhares de anos.
A dignidade é o valor mais alto da vida, e o cuidado — simples, cotidiano, ordinário — é o que a sustenta. É a própria dignidade que nos dá lição de humildade, apontando que a vida é maior que nós.
Enquanto nossas necessidades coletivas forem menores que nossos pactos egoístas e narcisistas, seguiremos nessa pindaíba existencial. Instituições são fundamentais na democracia, mas só gente é capaz de cuidar.
Cuidar é criar pequenas condições para que uma vida exista e se mantenha viva. Cuidado é consideração, preocupação e atenção. Isso, aliás, não se aprende nos manuais.
Afinal, somos gente, não coisa.
Foto: Sérgio Larraim




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